Entrevista com Xiomara Hortênsia Zelaya
Memória do golpe de Estado
Estudante de comunicação, Xiomara recebeu a reportagem na casa da família, onde Zelaya sofreu o golpe de Estado e foi arrancado de pijama pelos militares na manhã do dia 28 de junho. A seguir, a jovem reconstitui os momentos da invasão.
Alexandra Martins
enviada especial a Honduras
Tegucigalpa, Honduras. Xiomara Hortênsia Zelaya Castro, 24, conhecida pelo apelido de Pichu, é uma das filhas do presidente deposto de Honduras, Manuel Zelaya, 57. Estudante do primeiro ano de comunicação, Xiomara recebeu a reportagem na tarde de quinta-feira na casa da família, no luxuoso bairro de Tres Caminos, onde Zelaya sofreu o golpe de Estado e foi arrancado de pijama pelos militares na manhã do dia 28 de junho. A jovem mostrou todas as dependências da casa por onde os militares passaram e logo depredaram. Pichu reconstituiu os 40 minutos daquela invasão à propriedade, onde estavam ela, o pai e uma segurança presidencial no interior da casa. Contou que os militares renderam e desarmaram primeiro a guarda presidencial e logo quebraram os cadeados do portão da parte traseira de casa. Ela acabava de entrar no banheiro quando começou a ouvir os primeiros disparos. Seu pai acordou com o terceiro tiro, conta. Zelaya se dirigiu imediatamente à porta do banheiro e lhe disse: "Pichu, estão dando o golpe de Estado", lembra.
Naquele momento, o presidente deposto foi abordado pelos militares enquanto ela seguia trancada no banho. Ela conseguiu abrir a porta e correu para se esconder debaixo da cama em seu quarto enquanto seu pai era levado com as roupas do corpo pelos militares em direção ao aeroporto, de onde viajariam para a Costa Rica. Xiomara fala na entrevista abaixo sobre os rumores de corrupção que envolvem seu pai; sobre o suposto envolvimento da família com o narcotráfico; da amizade que sempre existiu entre Zelaya e o presidente interino, Roberto Micheletti; da prévia relação entre seu pai e o general Romeo Vasquez, que ordenou o golpe; dos boatos sobre as supostas amantes de Zelaya e ainda das supostas surras que dava em sua mulher, Xiomara Castro.
Fala ainda daqueles que hoje representam o "verdadeiro poder" em Honduras e das privações impostas a seu pai, abrigado desde o dia 21 de setembro na Embaixada do Brasil em Tegucigalpa. "Falar sobre esse assunto me ajuda a superar o trauma", explicava Pichu ao final de duas horas de conversa pessoal sobre sua família. Leia a seleção de alguns trechos.
A família foi preparada para o dia do golpe?
Durante toda a semana nós havíamos tomado algumas medidas de segurança. Papai nos apresentou todas as situações às quais ele poderia estar submetido. Eram dias de tensão. Nessa casa não estava dormindo ninguém. Ele dormiu naquela noite porque ele sentiu que não iam fazer nada contra ele. Estávamos esperando para a quinta-feira, porque foi quando houve uma grande reunição no congresso. Na quarta-feira, meu pai havia anunciado a destituição de Romeo Vásquez (chefe das Forças Armadas), mas a Corte Suprema de Justiça voltou a restitui-lo na quinta-feira. Daí meu pai veio dormir aqui porque pensou que, se eles não deram o golpe na quinta, era porque não iam a fazê-lo mais. No sábado, um dia antes do golpe, meu pai se reuniu com todos os embaixadores da Organização dos Estados Americanos (OEA) e observadores. Ele se permitiu dormir em casa. Papai chegou em casa às 4h da manhã e os militares, às 5h30.
Eu estava fora de casa, mas vim para cá quando vi meu pai pela televisão dando entrevista à 1h da manhã. Vim porque não queria deixa-lo sozinho e porque queria acorda-lo de manhã cedo.
O que você escutava lá de dentro do quarto na manhã do golpe?
Eu me tranquei no quarto e só escutava os tiros. Escutava eles gritando: "Levanta as mãos". Escutei meu pai dizer: "Se a ordem é disparar, disparem já contra mim". Eu estava no quarto com minha guarda de segurança. De verdade, quando saí, achei que iria encontrar meu pai morto no chão. Quando entraram no meu quarto, eles encontraram minha guarda de segurança. Ela pediu que eles não disparassem. Eles lhe agarram e lhe tiraram a arma. Não me viram. Buscavam mais pessoas da família. Foram quebrando todas as portas da casa com chutes e pontapés. Os militares queriam obrigar minha guarda de segurança a assinar um documento, dizendo que o golpe havia sido às 6h15 porque aqui há uma lei
que proíbe que se faça uma captura antes das 6h da manhã, mas eles entraram às 5h30. Queriam obriga-la a assinar outro documento que dizia que havia uma ordem de captura que havia emitido a Corte Suprema de Justiça. Por não assinar, eles disseram que iam acusa-la de tráfico de armas, de ser a pessoa responsável por treinar meu pai em ações militares na fronteira com a Nicarágua. É que disseram que meu pai estava com os nicaraguenses e venezuelanos treinando para fazer um Exército da resistência com o fim de realizar um massacre aqui em Honduras.
O que vocês fizeram na sequência?
Eu liguei para minha irmã Zoe e ela ligou para a OEA, em Washington. Fomos ligando para todas as pessoas, para a imprensa, que não acreditava naquilo que dizíamos. As televisões não noticiaram nada naquela manhã. Só mais tarde, um canal estatal deu um pequeno comunicado. Cada um da família foi para uma embaixada da capital. Eu fui para a da Nicarágua e lá fiquei durante duas semanas e meia. Minha irmã Zoe foi para a de Taiwan, e meu irmão, para a de Cuba. Minha mãe estava em Olancho (Estado natal da família). Eles haviam bloqueado os cartões de crédito e as contas bancárias de toda a família.
Como era a relação de seu pai com o general Vásquez?
Tinha uma relação de muita confiança com nossa família. Ele tinha sido chefe do Estado Maior no governo anterior, de Ricardo Maduro (2002-2006), um panamenho, que esteve envolvido em muitos escândalos. Meu pai confiava em Romeo e por isso o manteve no mesmo posto. A relação era muito próxima. Durante toda essa semana do golpe, meu pai esteve falando com ele todos os dias. Ele ligava todos os dias para minha mãe também, dizendo que era fiel ao presidente, para que ela não se preocupasse. No sábado, às 15h, minha mãe recebeu uma
ligação do general Romeo, dizendo que meu pai poderia até ir tomar um cafezinho com ele na sede do Estado Maior. Papai nos reenviava as mensagens que o general lhe mandava para nos tranquilizar. Foi uma época em que começaram a falar muito de uma invasão venezuelana e nicaraguense do país e de que haviam capturado nicaraguenses criminosos. Foi tudo uma campanha estratégica que montaram. Eu dizia a meu pai: "Olha, pai, se essa gente está nessa postura de defender a soberania, é para justificar a mobilização que estão fazendo". O Exército foi totalmente mobilizado naquela semana, havia tropas por todos os lados, houve uma militarização impressionante da capital. Era falso a história da invasão. Pedi a meu pai que mandasse de volta os militares aos quartéis. Daí ele respondia: "Não se preocupe, Pichu, que Romeo está garantindo que está tudo bem". Guardei todas as mensagens no telefone. O general foi um dos que foram a Washington a fazer lobby no Senado para respaldar o golpe.
Seu pai chegou a falar com o general depois do golpe?
Sim, eles conversaram quando papai queria voltar ao país, mas o general disse que não, que não se atrevera, que a ordem era de disparar contra o avição e que iam interceptar a aeronave. Essa foi a última conversa que meu pai teve com o general.
Como foi essa tentativa de pouso?
Eles estavam sobrevoando Tegucigalpa e o piloto disse que não podia pousar no aeroporto, que não queria arriscar e colocar em risco a vida de todos, mas meu pai queria pousar de todas maneiras. Enquanto o avição fazia o giro, os militares posicionaram vários carros na pista. Por isso o piloto disse que não. Eles foram então para El Salvador, onde estava o presidente Rafael Correa (Equador) e a presidente Cristina (Kirchner, da Argentina). Era um avição venezuelano. Hugo Chávez (presidente da Venezuela) lhe apoiou muito. Foi o avição dele que levou meu pai a Washington, por exemplo.
E como era a relação prévia com Roberto Micheletti?
Micheletti frequentou muito nossa casa. Éramos muito próximos à sua família, a seus filhos, almoçávamos juntos, sempre. Durante a campanha do meu pai, ele foi o coordenador político de tudo. Meu pai foi quem o colocou na presidência do Congresso. O problema é que Micheletti permitiu que lhe dominassem. Sempre falei com seus filhos: "Quando é que Micheletti vai deixar de fazer o que digam os demais?" As pessoas que estão atrás dele são os donos dos meios de comunicação, que são os donos do país, os Canahuati, donos dos jornais "El Heraldo" e "La Prensa", que sempre estiveram contra papai. Eles são donos das licitações de medicamentos, são donos porque ganham todas as licitações.
O senhor Carlos Flores Facussé, ex-presidente do país, dono do jornal "La Tribuna", que é como um guru, todos lhe consultam. Foi em seu governo que ocorreu a passagem do furacão Mitch, em 1998. Ele concedeu liberação de impostos aos estabelecimentos de comida rápida, como Burguer King etc. Essas empresas não pagam absolutamente nada de imposto neste país. Esse era o grupo que dominava Micheletti. Ele não toma nenhuma decisão. Quando a OEA veio ao país, logo depois do golpe, ele disse que não poderia renunciar porque havia sido um grupo de pessoas que lhe haviam respaldado e que ele devia lealdade a essas pessoas. Ele falou isso numa reunição. Ele é um testa de ferro a esse grupo de banqueiros e dos meios de comunicação. Minha sobrinha Irene, 4, sempre foi muito querida por Micheletti. Ele lhe mandava sempre presentes, como periquitos e doces. Micheletti ligava pra ela, às vezes lhe mandava saudações pela televisão, ao vivo. Os dois se adoravam.
Ela acabou sabendo de tudo, dizendo que Micheletti havia quitado o trono de seu avô. Irene uma vez perguntou à minha irmã: "É verdade que Micheletti não está a favor da quarta urna?" Sua família foi alvo de muitas críticas pessoais...
Falavam que as filhas utilizavam dinheiro e recursos públicos para se divertir e que seu pai batia na sua mãe. Nós passamos por uma espécie de treinamento durante a última campanha presidencial, que foi terrível quanto a críticas. Essa oposição foi feita por Porfírio Lobo Sosa, que era presidente do Congresso. Fomos bombardeados de críticas pessoais. Chamaram meu pai de assassino.
Começaram a levantar histórias de corrupção de quando meu pai foi ministro.
Todos os dias havia uma coletiva de imprensa para divulgar alguma história mentirosa. Daí, quando entramos no governo, foi pior. Diziam que eu havia usado o avição presidencial para ver shows de Shakira pela América do Sul; que meu irmão havia ido ao Ritz de Chicago com dinheiro público.
E a histórias das amantes e de que seu pai batia na sua mãe?
Tudo mentira. Diziam que papai tinha amantes, que batia na minha mãe e que ela até esteve no hospital militar em terrível estado. Foi totalmente mentira.
Falaram que não era minha irmã que estava grávida, mas que era eu. Depois disseram que eu havia abortado porque me viram com uma blusa mais justa.
Quando eu saía com uma bata, eles colocavam nos jornais "Pichu agora usa bata".
E a questão de que seu pai e seu irmão estariam envolvidos com o narcotráfico?
Isso começou no primeiro ano de governo e os rumores foram feitos diretamente por esse senhor Robert Carmona, um venezuelano que está
refugiado nos EUA porque fugiu da Justiça venezuelana. Ele esteve envolvido no golpe de Estado de Hugo Chávez na Venezuela. Em 2006, houve um problema em uma empresa da qual ele era dono, Latino. Foi dito que ele tinha feito um contrato ilícito com o Estado e que havia subornado certas pessoas. Quando foi divulgado, coincidiu com uma campanha que fizemos contra o narcotráfico no país, em que ele estava envolvido. Imediatamente ele começou a fazer críticas pessoais contra meu pai. De fato, queriam envolver meu pai no caso da empresa Latino. Ele dizia que era a meu pai que eles haviam subornado.
Foi demonstrado que o contrato havia sido feito no governo anterior e que meu pai não tinha nada a ver com a história. O Departamento de Justiça dos EUA demonstrou que meu pai não tinha nada que ver com isso. De imediato, envolveram meu irmão, que está casado com Marcela Kafati, cujo pai é dono da empresa de café Índio, que é uma das maiores empresas de Honduras. Carmona era amigo de um tio de Marcela, cujo pai tem problemas com o próprio irmão por causa de herança. Ele começou a falar que meu irmão tinha vínculo com o narcotráfico, coisas totalmente falsas, onde não se comprovou nada. Durante o golpe, disseram que havia uma ordem de captura contra meu irmão pelo narcotráfico, sem apresentar nenhuma prova. Deixaram de envolver meu irmão para envolver meu pai, que passou a ser o narcotraficante. É tudo falso.
Como se encontra seu pai e com que frequência vocês o visitam?
Nós o visitamos todos os domingos, que é quando os militares nos deixam passar.
Papai tem uma hérnia de disco e precisa de cuidados médicos. Nós levamos sua comida todos os dias. Antes, essa comida era cheirada por cachorros. Hoje, eles usam luvas de plástico para verificar com as mãos se não há nada dentro das embalagens. O maior problema é com o lixo, que se aglomera. O cheiro é insuportável. Há muitas moscas.
Ele chegou a fazer algum pedido exótico a vocês?
Não, apenas que nós lhe levássemos banana, mas só que os militares não deixam que entrem frutas.
Dizem que só com receita médica. Vê se pode. Recentemente, nós levamos seu violão. Mamãe diz que ele passa muito tempo tocando as canções que gosta. Eu mandei para ele alguns acordes pela internet. Essa é a forma que ele encontrou para relaxar.
A jornalista viaou a convite do Tribunal Supremo Eleitoral
Publicado em: 29/11/2009
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