terça-feira, 4 de outubro de 2011

Pílulas de urbanismo

Pílulas de urbanismo
João Whitaker receita doses de contextualização histórica e social para aliviar surtos de desentendimento político sobre o problema habitacional de São Paulo

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Quanto pesa uma bacia de ferro cheia de merda? – Merda e mijo. De gente. Hein? Os negros tigrados do século 19 sabiam muito bem o sofrimento que dava carregá-las. Negros porque, naquela época, eram escravos. Tigrados porque, enquanto levavam nos ombros os rejeitos intestinais do patrão e sua família, o líquido fedorento se derramava e lhes escorria pelas costas. Como o caminho até o riacho mais próximo fosse longo, o sol se encarregava de transformar a química putrefata dos excrementos escuros dos brancos em manchas esbranquiçadas sobre a pela escura dos negros. Tigres. Às avessas.

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A questão urbana no Brasil é um reflexo da questão econômica e social. Quer dizer, os padrões de crescimento e estruturação da nossa sociedade e da nossa economia se refletem especial e espacialmente na cidade. Quer dizer, a maneira como as cidades foram organizadas no país tem a ver com a maneira com que foram organizadas nossa economia e nossa sociedade. Dá pra falar a mesma coisa de vários jeitos diferentes, assim como dá para construir uma cidade de muitas formas distintas. O importante é ter consciência – ou ficar ligado – que São Paulo não é assim (olhe pela janela) por obra do acaso: foi uma escolha dos cidadãos, ou de uma parcela dos cidadãos: a mesma que escolheu os caminhos da economia.

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É uma lógica bastante simples. Voltemos à Colônia: naqueles tempos, tínhamos uma pequeníssima parcela da população (a elite) que dominava a terra, o Estado e o trabalho. Era proprietária dos meios de produção (lavouras, pequenas manufaturas e comércios) e beneficiária do poder político. Isso mesmo, a elite concentrava tudo. Basta lembrar que nos primórdios da colonização, a Coroa Portuguesa distribuía capitanias hereditárias e sesmarias aos patrícios que desembarcavam no Novo Mundo, e dentro delas o senhor era a autoridade inconteste. O trabalho era escravo. O negro não era considerado gente – ou seja, não tinha direito a ter direitos. Logo, estava totalmente submetido aos desígnios do branco dono da terra. Era ele quem decidia quem ficava em suas parcelas e quem não era bem-vindo. A elite era quem controlava, pois, a ocupação do espaço.

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Era não – é. Segundo o urbanista João Whitaker, a essência desse raciocínio se mantém até hoje, e grupos minoritários seguem controlando a ocupação do território nas zonas rural e urbana. Vejamos o exemplo de São Paulo: a primeira urbanização que aconteceu na cidade veio atender aos interesses da elite agrária que, claro, tirava seu sustento das lavouras de café, mas utilizava os serviços urbanos para exportar sua produção. Bancos, bolsas de valores, entrepostos comerciais, transportes... No final do século 19, o campo já precisava da cidade para sustentar seus padrões de concentração de riqueza. “Não é que houvesse grandes problemas urbanos naquela época”, lembra Whitaker, que coordena o Laboratório de Habitação (LabHab) da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU) da Universidade de São Paulo (USP). “A preocupação era melhorar a situação dos bairros onde estavam instaladas as famílias das grandes elites. Os planos urbanísticos que existem no Brasil desde 1890 são descaradamente voltados para a melhoria das regiões da cidade onde mora a parcela mais rica da população.”

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Daí surge um dos grandes mal-entendidos do planejamento urbano brasileiro: a higienização. Como tem ocorrido desde que o homem branco chegou a Pindorama, o higienismo é uma ideia importada da Europa. Só que, no Velho Mundo, o higienismo não deixou de ser uma boa ideia, pensada e aplicada para melhorar a condição de vida da massa proletária que se amontoava em bairros sem água encanada ou rede de esgoto. A Revolução Industrial já era irreversível na Inglaterra do século 19 e as cidades haviam se transformado no centro da economia. Algo precisava ser feito para que os trabalhadores deixassem de viver na imundície e morrer aos 30 anos: isso baixava a produtividade e dava prejuízo à burguesia ascendente. No Brasil, porém, não havia indústria. Quando havia, era algo incipiente: fabricação de sacas de juta, beneficiamento de couro e banha, roupas, sempre localizadas nas áreas periféricas da cidade. “O engraçado é que, quando se importa o urbanismo de fora, o higienismo vai ser executado onde? No bairro de Higienópolis, onde havia as grandes mansões. São as ideias fora do lugar”, continua Whitaker. “E os pobres que se lascassem.”

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É o Estado do deixe-estar social: o público no Brasil nunca foi público. O que deveria ter sido feito em benefício de todos, acabou sendo feito em benefício dos mais ricos. Ontem e hoje. Qual foi a última grande obra executada na cidade de São Paulo? Onde ela se localiza? A quem ela é voltada? Ponte Estaiada... Morumbi... Carros... E não é coincidência. “O Estado patrimonialista vai produzir leis de regulação da cidade que sempre favorecem os setores já favorecidos. Todos os investimentos urbanos no Brasil têm a característica comum de reforçar o padrão de uma cidade desigual.” Há lugares na periferia de São Paulo que não contam com iluminação, asfalto ou saneamento básico. Ou seja, não possuem o básico do básico. Mas recentemente a Rua Oscar Freire, passarela de butiques de luxo, teve a fiação soterrada e as calçadas reformadas pela Prefeitura ao preço de 4,5 milhões de reais. Ao invés de atender as necessidades básicas de todos, o poder público prefere atender aos caprichos dos que há muito tempo já foram agraciados com as benesses da civilização. Portanto, a política habitacional para as camadas populares nada mais é do que a não-política habitacional. O que são as favelas senão a falência completa do Estado em atender as mais mínimas necessidades urbanísticas de seus cidadãos? João Whitaker diz que tem tudo a ver com a industrialização na década de 1950: 50 anos em 5, não é? Mas, como? Empresas multinacionais. Como? Redução de impostos, salários baixos, direitos trabalhistas irrisórios, incentivos do poder público. A Oscar Freire passou por uma reforma extremamente assessória porque lá corre muito dinheiro. Sobre a Ponte Estaiada rodam carros importados e empresários de sucesso. “Com a aparência de uma cidade moderna, você cria uma cidade segregadora, exclusivista, que se fragmenta e se isola.”

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Se isola em centros de pujança, que são dominados pelo mercado imobiliário – que é um mercado, portanto vende produtos, portanto deve permanentemente renovar sua produção. Pense numa indústria de automóveis. Tem que fazer carro sem parar. Se para, não vende. Mas não é só a linha de montagem que deve ser contínua: tem que oferecer carros novos e inovadores. Por isso, todo ano aparece um modelo mais moderno, com air bag, direção hidráulica, design arrojado, console digital... Com as casas e apartamentos acontece a mesma coisa. Se o mercado imobiliário deixar de oferecer mais conforto, mais vagas na garagem, mais segurança, mais mais mais, vai à falência. “O mercado imobiliário vai estar o tempo todo tentando convencer os setores de maior poder aquisitivo de que eles podem morar num lugar melhor. As regiões nobres vão se deslocando e criando novos centros, para onde são canalizados os investimentos públicos.” João Whitaker diz que basta ver o plano de expansão do metrô em São Paulo para constatar quem é que se beneficia com a “linha glamourosa” que sai do Morumbi, passa por Pinheiros, Oscar Freire e Higienópolis até chegar à República, no coração da área mais valorizada do Centro, e à Luz, onde a Prefeitura há anos executa um plano de limpeza social com vistas a inflacionar o preço dos imóveis vizinhos da Pinacoteca e da Sala São Paulo.

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“Na cidade, o investimento que valoriza um bairro é público. E o dinheiro público é fruto do trabalho socialmente produzido. O que vai tornar o Morumbi mais valorizado é o fato de ele ter pontes e avenidas que nós todos pagamos. Porém, quem vai se apropriar desta valorização é o sujeito que consegue pagar para morar ali. No espaço capitalista da cidade existe uma apropriação individual dos investimentos sociais e coletivos, que os urbanistas marxistas chamam de mais-valia urbana.” Em outras palavras: todos sabemos que o dinheiro da Prefeitura vem dos impostos que todos nós pagamos, seja diretamente para a administração local, seja para as instâncias estaduais ou federais. É com esse dinheiro que se executam as obras de asfaltamento, metrô, escolas, jardinagem, habitação, ônibus etc. Numa sociedade verdadeiramente democrática, as obras públicas deveriam atender e beneficiar à totalidade da população, desde o centro até a periferia mais longínqua, não importando o tamanho da conta bancária de cada um. Em São Paulo, como já vimos e vemos, isso não acontece. Mas o mais grave problema apontado por João Whitaker é que a desigualdade entre os bairros nasce exatamente de onde não deveria: dos investimentos públicos. Nada é por acaso. Se os moradores das favelas não têm saneamento básico enquanto os pedestres que circulam pela Oscar Freire caminham em calçadas largas e arborizadas, é porque a Prefeitura quis assim. Ao executar obras sofisticadas em algumas regiões da cidade que já estão bem atendidas pela rede de transporte, lazer e serviços, o governo municipal aumenta (ainda mais) o valor dos imóveis ali localizados. Assim, apenas quem tem bastante e cada vez mais dinheiro pode gozar de investimentos realizados com os impostos de todos – ricos, pobres, negros e brancos. “Bom, essa lógica é válida para qualquer cidade capitalista do mundo, mas no Brasil é reforçada pela cultura do preconceito social, que nasce da sociedade escravocrata. É a cultura que não tolera a pobreza, não tolera a mistura e não enxerga o pobre como sujeito social que tenha direito à cidade.”

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Já poetava Gilberto Gil: a refavela – revela o salto – que o preto pobre tanta dar – quando se arranca – do seu barraco – prum bloco do BNH. Caminhando e cantando e seguindo a canção, faz mais ou menos uns 10 anos que os movimentos sociais que lutam pela moradia em São Paulo começaram a reivindicar o Centro como área propícia e prioritária para a reforma urbana. No Centro a gente não tem gasto com transporte, a gente mora perto do trabalho, perto das opções de lazer e cultura... A quem nunca ocorreram tais pensamentos? Viver no Centro é mergulhar de pés e cabeça em tudo que a cidade pode oferecer. O Centro concentra 60% dos postos de trabalho, mas, curiosamente, é uma região que registra crescimento populacional negativo de -1,2% ao ano. “É uma área que deveria ser tomada pelo governo para promover uma ocupação democrática que permita disponibilizar moradia adequada à oferta de empregos que ali se concentra.” Mas isso nunca aconteceu: pelo menos não na intensidade que deveria. Durante governos mais “populares”, lembra João Whitaker, o poder público deu um pouco mais de atenção ao Centro. A gestão de Luiza Erundina, por exemplo, promoveu uma política de ação em cortiços, que recuperou imóveis para construção de habitações populares em mutirão. Marta Suplicy colocou em prática o projeto Morar no Centro, idealizado junto com os movimentos sociais. E só. Antes disso, ironicamente, um dos maiores projetos de democratização do Centro nasceu no governo de Paulo Maluf. Não porque a prefeitura estivesse comprometida em levar a população de baixa renda para o Centro, mas porque a construção do Minhocão fez com que despencasse o preço dos imóveis nas regiões atravessadas pela pista elevada. Assim, quem ganhava um pouco menos pôde se mudar para apartamentos amplos, que haviam sido caros em meados do século 20, mas que passaram cobrar aluguéis que cabiam no bolso do trabalhador. Basta aguentar o ruído dos escapamentos que decoram a vista a 50 km/h. No Centro de São Paulo, a refavela (que Gilberto Gil interpreta como a ascensão social das classes marginalizadas) não teve nada a ver com BNH.

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O Estatuto das Cidades foi concebido na Constituição de 1988, mas só nasceu nos anos 2000. É um instrumento legal que possibilita ao governo combater a situação de desigualdade urbana, dentro da lei e sem passar por cima do direito de ninguém. Com o Estatuto nas mãos, a Prefeitura poderia, por exemplo, combater a especulação imobiliária. Bastaria acionar na Justiça proprietários que mantêm terrenos vazios em áreas de interesse habitacional. Nunca é demais lembrar que a propriedade, segundo a Carta Magna escrita pelos brasileiros após a ditadura militar, não é um valor absoluto e deve estar sempre ligada à sua função social. Pedaços de terra e imóveis que ficam às moscas, apenas esperando o tempo passar e os preços subirem, descumprem com seus deveres constitucionais. De acordo com o Estatuto das Cidades, o poder público também poderia idealizar e executar projetos urbanísticos voltados para a construção de habitações sociais, através das chamadas ZEIS ou Zonas Especiais de Interesse Social. Poderia, “mas como é um problema essencialmente político, passado dez anos da criação do Estatuto das Cidades, praticamente nenhum município aplicou de fato estes instrumentos”, critica João Whitaker.

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“Vamos pegar, por exemplo, um edifício que foi ocupado e é simbólico para explicar como isso acontece: o Prestes Maia. É um prédio vazio há 15 anos, devendo 5 milhões de IPTU. Portanto, é um prédio que está contra a lei e passível de sofrer a reforma urbana.”

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Texto escrito em 2007: O Prestes Maia é um exemplo de resistência popular à injustiça social que oferece seu contraste mais cruel justamente aqui, na cidade de São Paulo, onde os mais pobres e os mais ricos convivem lado a lado, ora com violência explícita, ora velada. Os 23 andares do Prestes foram ocupados depois de anos de inutilidade. Ali, em pleno centro, um monstro de concreto estava vazio, morto, enquanto milhares de pessoas não têm dinheiro para pagar aluguel ou são obrigadas a morar longe, muito longe dos empregos, da cultura e do lazer que a cidade oferece. Os sem-teto se organizaram, muitos deles cansados de desviar o dinheiro da cesta básica para evitar o despejo de cortiços e quitinetes que, mesmo baratas, são difíceis de pagar para a maioria dos trabalhadores. Entraram no Prestes no meio de uma das noites de 2003. E ficaram. Ali tiveram muito trabalho. Ligaram a força, pediram a instalação de telefones, recuperaram o sistema de abastecimento de água. Na medida de suas possibilidades, deram vida nova ao prédio. Foi o melhor processo de revitalização que poderia ter acontecido ali. Tiveram filhos, construíram uma biblioteca, um espaço cultural com exposições, palestras, música, arte. Transformaram o Prestes abandonado – tomado por ratos e baratas – em suas casas. Porque o foco de resistência popular, o novo quilombo, a maior ocupação vertical da América Latina, antes de tudo, é um conjunto residencial. Lá moram camelôs, catadores de papel, eletricistas, guardadores de carro, carroceiros, empregadas domésticas. Para muitos, morar num dos apartamentos improvisados na avenida Prestes Maia, 911, Luz, é mais que um endereço, é garantia de trabalho. E dignidade. É a residência autogestionada. Tudo funciona na base do cooperativismo, desde a limpeza até a coordenação. A lição de democracia ensinada pelo Prestes passa pelas decisões tomadas em assembleia, pela liderança obediente do MSTC, pela luta diária contra a opinião pública, o poder público, a polícia, contra todas as forças sociais que transformam a ocupação em invasão, os sem-teto em criminosos, a resistência em transgressão, a revitalização em favelização. Onde pode haver justiça nessa reintegração de posse constantemente anunciada e adiada, anunciada e adiada? Os proprietários do Prestes, aqueles que detêm os papéis reconhecidos em cartório, devem muito IPTU para a Prefeitura: mais de cinco milhões. O Prestes ocupado pelos sem-teto, os 23 andares de moradia para aqueles que não têm outro lugar que não a rua, não tem preço. Mas a Caixa Econômica Federal estima que vale sete milhões. Os militantes jamais vão impedir a polícia de expulsá-los. Não há comparação de forças quando há bombas e escudos de um lado, revolta e peito aberto do outro. Além do mais, qualquer tipo de enfrentamento físico vai contra a tradição dos sem-teto. O punho cerrado está lá para reivindicar, não para bater. A voz e a organização são as armas de ataque. Elas não ferem, convencem. Por isso, o Prestes tem que vencer, tem que se transformar de uma vez por todas num conjunto reestruturado com o apoio de arquitetos e engenheiros financiados pelos programas habitacionais da prefeitura, do estado e da União. Para que ganhe o status do símbolo que é, da força que representa, da mudança que pode iniciar quando o povo organizado desde baixo, por si mesmo, consegue vencer os mais espúrios interesses especulativos e mostrar que o ser humano vem antes. Sempre!

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Para fazer reforma urbana, a Prefeitura precisa de vontade política, mas em São Paulo existe uma inversão tremenda de prioridades. É a lógica do governo para os ricos, do dinheiro de todos sendo investido para benefício de poucos. Hoje apenas 2% do orçamento municipal são aplicados nos projetos de habitação. Por isso, segundo João Whitaker, os movimentos de moradia têm que basear seu discurso e suas manifestações na luta política e cultural. A discussão técnica – déficits habitacionais & cia ltda – é papel dos especialistas e não vai provocar transformações radicais. “Precisamos de conflito para mudar a configuração das cidades brasileiras”, diz. Olho nas estatísticas, não: o melhor é dedo na cara. 




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