sábado, 12 de dezembro de 2009

China é acusada de ajudar filhos da elite da Namíbia com bolsas de estudo

Jornal do país africano denunciou suposta benesse a altas autoridades.

Agências governamentais envolvidas não responderam às acusações.
Sharon LaFraniere Do New York Times, em Pequim

Assim como os pais de qualquer lugar, as mães e pais da Namíbia, um pobre país localizado no sul da África, se preocupam com custos da faculdade e oportunidades para seus filhos. O governo chinês se adiantou para ajudar – para alguns poucos poderosos.

Até agora neste ano, o governo de Pequim têm cedido secretamente bolsas de estudo na China aos filhos de nove altas autoridades, incluindo a filha do presidente da Namíbia, Hifikepunye Pohamba. Dois jovens parentes do ex-presidente da nação e patriarca nacional, Sam Nujoma, também receberam bolsas.

A divulgação dessas bolsas, reveladas inicialmente por um agressivo jornal namibiano, deflagrou uma onda de fúria em grupos locais da sociedade civil e organizações de jovens. Num país onde cinco em cada seis estudantes terminam sua carreira acadêmica na graduação do colegial, muitos consideram inconcebível que líderes governamentais, muito bem pagos, aceitem bolsas universitárias de estrangeiros para seus filhos.


Foto: The New York Times

Fachada do prédio do Exim Bank, em Pequim. (Foto: The New York Times)


“Apenas membros seniores do governo sabiam a respeito das bolsas”, disse Norman Tjombe, diretor do Centro de Assistência Legal, organização sem fins lucrativos. “Nenhuma chance foi dada ao público em geral.”

A controvérsia reativou um polêmico debate na Namíbia sobre os acordos com o governo chinês, que já estavam sendo analisados por promotores namibianos. Questionamentos lá, e em outros países em desenvolvimento da África e da Ásia, colocaram uma nova luz sobre como a China algumas vezes usa empréstimos e apoios estrangeiros para criar alianças com a elite e facilitar a aprovação de contratos sem concorrência.

Até mesmo alguns membros do partido governante da Namíbia, chamado Swapo, estão questionando se a China estaria tentando comprar influências com a liderança política de seu país para ganhar acesso a recursos minerais, ou para obter novos negócios para suas bem relacionadas empresas.

“Como é que esse favor simplesmente cai do céu?” disse Elijan Ngurare, secretário-geral da liga jovem do Swapo, numa entrevista por telefone. “Obviamente, eles estão querendo alguma coisa”.

Para alguns especialistas em relações internacionais, a controvérsia das bolsas ilustra um ponto cego na agressiva estratégia chinesa de cimentar alianças diplomáticas, obter recursos naturais e solicitar comércio e negócios no continente africano. Ao menos na Namíbia, autoridades do governo chinês parecem ter sido pegos de guarda baixa pela descoberta pública de uma vibrante sociedade civil.

O escândalo das bolsas foi revelado pela primeira vez no Informante, um tabloide gratuito da capital namibiana, Windhoek, com um pomposo lema: “Você esconde. Nós revelamos”. Esse trabalho não tem correspondente na China, onde até mesmo as mídias mais agressivas param antes de suscitar questões desfavoráveis sobre as ações de altas autoridades e seus filhos.

Bates Gill, diretor do Instituto Internacional de Paz de Estocolmo, disse que a China estava acostumada a relações opacas e controladas entre governos. “O engajamento da China na África está se movendo mais adiante e com mais rapidez do que sua habilidade de tentar moldar as percepções de lá”, disse ele. Como resultado, “inevitavelmente haverá constrangimentos”.

A lista na Namíbia está crescendo. Em julho, investigadores anticorrupção alegaram que um funcionário chinês controlado pelo governo havia facilitado um contrato de US$55,3 milhões para vender scanners de segurança ao governo namibiano com milhões de dólares em propinas. O questionamento é particularmente delicado, pois, até o final do ano passado, Hu Haifeng, filho do presidente chinês Hu Jintao, administrava a empresa de scanners. Uma autoridade do Ministério do Comércio Chinês disse, recentemente, que a China estava cooperando com as autoridades namibianas.

Outra investigação traz alegações de que uma empresa chinesa de armamentos haveria canalizado US$ 700 mil ao tenente General Martin Shalli, o comandante das forças de defesa da Namíbia. O presidente do país suspendeu Shalli de seu posto em julho. Até agora, Shalli se recusou a comentar o caso.

Gill disse que tais alegações ameaçavam minar a impressionante campanha chinesa para unir seu continente ao da África. No geral, embora a China esteja fazendo “uma enorme contribuição positiva ao desenvolvimento africano”, disse ele, ela ainda está desacostumada com a dinâmica de algumas democracias da África.

No recente Fórum pela Cooperação China-África, o primeiro-ministro chinês, Wen Jiabao, anunciou que a China iria dobrar o valor de empréstimo a baixos juros oferecidos à África para US$ 10 bilhões nos próximos três anos, aumentar o número de bolsas e reduzir as tarifas sobre produtos vindos das nações mais pobres.

Porém, ele pareceu frustrado quando lhe perguntaram se a China estaria atrás apenas de seus recursos naturais. “Por que sempre há acusações contra a China?” perguntou ele numa coletiva de imprensa no Cairo, em 8 de novembro. “Esse é um ponto de vista africano ou simplesmente ocidental?”

Na Namíbia, cientistas políticos dizem que as preocupações estão crescendo sobre se autoridades estariam negociando contratos secretos com os chineses. “As pessoas estão pensando que a China está fazendo acordos secretos com o governo daqui, e o povo está com todo tipo de suspeita”, disse Carola Engelbrecht, uma cidadã ativista.

Os recebedores das bolsas são filhos de algumas das autoridades mais poderosas da Namíbia, incluindo o inspetor-geral da policia namibiana e o ministro da justiça, que é também o secretário-geral do partido Swapo.

Um dos presenteados é filho do ministro da defesa, cuja agência compra armas da China. Outro é filho do ministro de assuntos internos e imigração, cujo gabinete é responsável por aprovar residência e permissões de trabalho para um exército de trabalhadores chineses – cujos empregadores venceram contratos governamentais ou privados para realizar negócios na Namíbia.

Três outros são filhos do ministro, ministro adjunto, e da terceira autoridade de maior nível do Ministério de Minas e Energia. Em junho, o ministério renovou uma licença que concede, à subsidiária de uma empresa estatal chinesa, direitos exclusivos para buscar urânio e outros minerais numa das principais áreas de prospecção.

A comissão anticorrupção do país iniciou uma investigação preliminar sobre como as bolsas foram concedidas. Autoridades do governo chinês reagiram de uma maneira familiar: três agências governamentais de Pequim não responderam perguntas escritas.

Xia Lili, primeiro secretário da embaixada chinesa em Windhoek, disse não ter nenhuma obrigação de responder a questionamentos. “Isso é assunto encerrado”, concluiu.
Entretanto, Bill Lindeke,cientista político do Instituto de Pesquisa de Políticas Públicas em Windhoek, disse que as autoridades namibianas poderiam ser forçadas a pagar pela educação de seus filhos na China, apenas para suavizar a controvérsia.

De início, autoridades da embaixada chinesa insistiram que o Ministério da Educação era o responsável pelo processo de seleção. Porém, o ministro da educação da Namíbia, Nangolo Mbumba, disse, numa coletiva de imprensa em novembro, que seu ministério cuidava apenas de dez bolsas a estudantes desprivilegiados, e nada tinha a ver com as outras bolsas – algumas das quais aparentemente cobrem até cinco anos de mensalidades.

Ele disse que a filha do presidente, Ndapanda Pohamba, hoje estudante da Universidade de Cultura e Linguagem de Pequim, “se inscreveu para a bolsa por sua própria conta, e só depois notificou seus pais”.
A declaração do ministro, de que “não se pode subornar alguém com uma bolsa”, desencadeou uma nova onda de indignação, num país cujas duas universidades podem acomodar apenas cerca de dois mil alunos, de um
total de 12 mil colegiais que se formam anualmente.
“Sr. Mbumba: qualquer coisa de valor que o senhor aceite, ou pior, solicite, constitui suborno caso o senhor trabalhe num cargo público”, disse um cidadão numa mensagem de texto postada no site do The Namibian, um jornal de Windhoek.

Tradução: Gabriela d'Avila

segunda-feira, 7 de dezembro de 2009

Computadores descartados pela Europa envenenam crianças na África


Computadores descartados pela Europa envenenam crianças na África

Os cidadãos do Ocidente jogam fora milhões de computadores velhos todos os anos. Centenas de milhares deles acabam na África, onde as crianças procuram ganhar a vida vendendo peças velhas das máquinas. Mas os elementos tóxicos presentes no lixo as estão envenenando lentamente.

Por Clemens Höges, na Der Spiegel

Segundo a Bíblia, Deus lançou uma chuva de fogo e enxofre para destruir as cidades de Sodoma e Gomorra. As autoridades governamentais de Acra, em Gana, também passaram a chamar de "Sodoma e Gomorra" uma parte da cidade afetada por produtos tóxicos de um tipo que os moradores das cidades bíblicas jamais poderiam imaginar. Ninguém vai a esse local, a menos que isso seja absolutamente necessário.

Uma fumaça ácida e negra passa sobre os barracos da favela. As águas do rio também são pretas e viscosas como óleo usado. Elas carregam gabinetes de computador vazios para o oceano. Nas margens do rio veem-se fogueiras alimentadas por isopor e pedaços de plástico. As chamas consomem o material plástico de cabos, conectores e placas-mãe, deixando intactos apenas o metal.

Hoje há um vento que faz com que a fumaça dessas fogueiras infernais passe lentamente por sobre a terra. Respirar muito profundamente é doloroso para os pulmões, e as pessoas que alimentam as fogueiras às vezes dão a impressão de serem apenas silhuetas vagas e nebulosas.

Uma figura pequena e curvada caminha entre as fogueiras. Com uma mão, o garoto arrasta um alto-falante velho pela terra e as cinzas, puxando-o por um fio. Com a outra mão ele segura firmemente uma bolsa.

O alto-falante e a bolsa são as únicas posses do garoto, além da camiseta e as calças que ele usa. Ele tem um nome incomum: Bismarck. O garoto tem 14 anos, mas é pequeno para a idade.

Bismarck vasculha a terra em busca de qualquer coisa que os garotos mais velhos possam ter deixado para trás após queimarem uma pilha de computadores. Podem ser pedaços de cabo de cobre, o motor de um disco rígido, ou peças velhas de alumínio. Os ímãs do seu alto-falante também capturam parafusos ou conectores de aço.

Bismarck joga tudo o que encontra dentro da bolsa. Quando a bolsa estiver cheia até a metade, ele poderá vender o metal e comprar um pouco de arroz, e talvez também um tomate, ou até mesmo uma coxa de galinha grelhada em uma fogueira acesa dentro do aro de um carro velho. Mas o garoto diz que hoje ainda não encontrou o suficiente. Ele desaparece novamente na fumaça.

O refugo da era da internet


Esta área próxima a Sodoma e Gomorra é o destino final dos computadores velhos e outros produtos eletrônicos descartados de todo o mundo. Há muitos lugares como este, não só em Gana, mas também em países como Nigéria, Vietnã, Índia, China e Filipinas. Bismarck é apenas um de talvez uma centena de crianças daqui, e de milhares do mundo inteiro.

Essas crianças vivem em meio ao refugo da era da internet, e muitas delas podem morrer por causa disso. Elas desmancham computadores, quebrando telas com pedras, e a seguir jogam as peças eletrônicas internas em fogueiras. Computadores contêm grandes quantidades de metais pesados e, à medida que o plástico é queimado, as crianças inalam também fumaça carcerígena . Os computadores dos ricos estão envenenando os filhos dos pobres.

A Organização das Nações Unidas (ONU) calcula que até 50 milhões de toneladas de lixo eletrônico são jogadas anualmente no lixo em todo o mundo. O custo para se reciclar apropriadamente um velho monitor CRT na Alemanha é de 3,50 euros (US$ 5,30 ou R$ 9,20). Mas o envio do mesmo monitor para Gana em um contêiner de navio custa apenas 1,50 euro (R$ 3,80).

Um tratado internacional, a Convenção de Basileia, entrou em vigor em 1989. O tratado baseia-se em um conceito justo, proibindo os países desenvolvidos de enviarem computadores que foram para o lixo aos países subdesenvolvidos. Até o momento 172 países assinaram a convenção, mas três deles ainda não a ratificaram: Haiti, Afeganistão e Estados Unidos. Segundo estimativas da Agência de Proteção Ambiental norte-americana, cerca de 40 milhões de computadores são descartados todos os anos somente nos Estados Unidos.

Diretrizes da União Europeia com nomes como Weee (sigla em inglês de Lixo de Equipamentos Elétricos e Eletrônicos) e RoHS (Restrição a Substâncias Perigosas) seguiram-se à Convenção de Basileia, e países individuais transformaram-nas em lei. As leis relativas à administração de lixo na Alemanha estão entre as mais estritas do mundo. Neste país o envio de computadores descartados a Gana pode dar cadeia. Em tese.

Um negócio milionário


Recentemente o governo alemão mobilizou-se para verificar como é a situação na prática. Especialistas da Agência Federal do Meio Ambiente alemã ainda estão redigindo um relatório que será divulgado nas próximas semanas, mas as conclusões já são conhecidas: há sérias brechas no sistema de reciclagem do país. Segundo o estudo, firmas de exportação da Alemanha enviam 100 mil toneladas de aparelhos elétricos descartados a cada ano para os países subdesenvolvidos, o que é bem mais do que os especialistas temiam.

"Este é um negócio milionário. Não se trata de algo que possa ser classificado como crime pequeno", afirma Knut Sander, do instituto ambiental Ökopol, com sede em Hamburgo. Ele foi o autor do estudo, que exigiu meses de pesquisas. Por causa das suas investigações ele recebeu avisos de que deveria tomar cuidado com a sua segurança.

Ele não teve que ir longe do seu escritório para observar a atividade dessa indústria de exportação. "O Porto de Hamburgo é importante", explica Sander. "Aquilo que não sai por Hamburgo é embarcado em Antuérpia ou Roterdã."

Sander descobriu pequenos negociantes  que enviam contêineres esporádicos ou alguns carros velhos cheios de computadores. Às vezes há centenas desses carros no terminal de O'Swaldkai, em Hamburgo, de onde os navios saem para a África. Há também grandes empresas enviando cargas de lixo tóxico - as chamadas companhias de remarketing, que coletam centenas de milhares de eletrodomésticos velhos todos os anos. Essas firmas têm autorização para revender computadores que estejam funcionando, mas são obrigadas a reciclar as máquinas defeituosas. E algumas delas sabem muito bem quanto dinheiro podem economizar enviando esses computadores inúteis para Gana.

A tarefa de deter essa exportação de lixo deveria ficar a cargo de uns poucos funcionários da alfândega e da guarda portuária. Mas quando os agentes ocasionalmente abrem um contêiner, eles estão provavelmente pedindo para ter dores de cabeça nos tribunais. As leis não definem o que seja um computador descartado, e é legal exportar computadores usados; só não se pode exportar as máquinas descartadas. Um computador que está quebrado, mas talvez ainda pudesse ser consertado, pode ser considerado lixo? E quanto a um computador de 20 anos de idade, que não consegue mais rodar um único programa? Quando há dúvidas, os juízes dão ganho de causa aos exportadores.

Entrando no inferno

Bismarck só sabe que todos os computadores exalam mau-cheiro, tenham eles dez ou 20 anos de idade, e não importando se foram fabricados pela Dell, a Apple, a IBM ou a Siemens. Quando eles queimam, a fumaça faz com que a sua cabeça e garganta doam. As cinzas pegajosas grudam em cada poro e ruga, e provocam coceiras. Manchas aparecem na pele de Bismarck, mas ele sabe que não pode coçá-las porque a poeira tóxica entraria nas feridas abertas.

Desde o início Bismarck sabia que estava entrando no inferno. Mas quando tinha dez anos de idade, ele imaginava que o inferno pudesse, de alguma forma, ser uma aventura. De toda maneira, ele não tinha escolha, assim como as outras crianças daqui de Sodoma. A maioria delas vem das regiões mais pobres de Gana, no norte do país, para a capital, Acra.

Bismarck consegue ainda se lembrar da sua aldeia, que fica perto de Techiman, mais ou menos no meio do país. Lá não há eletricidade, e as paredes dos casebres são feitas de terra.

O pai dele desapareceu quando Bismarck era pequeno, de forma que ele jamais pôde perguntar por que o homem lhe deu um nome tão estranho, que ninguém na aldeia ouvira antes. A mãe de Bismarck criou-o sozinha, até ser atropelada por um carro. Ela perdeu as duas pernas no acidente, e morreu pouco depois.

Uma tia adotou Bismarck, mas havia pouca comida para todos. Finalmente um garoto mais velho da vila lhe falou sobre Acra, e de um lugar entre o mercado Agbogbloshie e a favela Sodoma, onde até  um menino de dez anos de idade seria capaz de ganhar dinheiro suficiente para comprar comida. O adolescente de 16 anos também  falou sobre os computadores e a fumaça, e que ele teria que ser forte.

Pouco tempo depois, os dois garotos foram embora da aldeia, viajando de ônibus e depois de trem. O mais velho tinha dinheiro para as passagens porque já havia trabalhado em Sodoma.

Um euro por dia

Bismarck aprendeu as regras rapidamente. Existe uma hierarquia, e todo garoto pode tentar galgar essa estrutura. Os homens jovens, de cerca de 25 anos de idade, controlam as grandes balanças de ferro velho que ficam com frequência em locais onde se pode ver marcas de pneus na cinza que cobre a terra. Quando a sacola de Bismarck fica cheia até a metade, após um dia perambulando em torno das fogueiras, ele pode vender o material recolhido para esses homens por cerca de dois cedis ganenses, o equivalente a cerca de um euro ou US$ 1,50 (R$ 2,60).

Aqueles que são um pouco mais novos, com cerca de 18 anos de idade, possuem carrinhos de mão feitos com tábuas e eixos de carros velhos. Eles seguem para a cidade no início da manhã para coletar computadores dos importadores de refugo e trazem o material de volta para a favela. Eles quebram os computadores e retiram os cabos, e depois jogam o que restou nas fogueiras ou vendem esse resíduos para garotos um pouco mais novos.

São principalmente esses garotos que carregam os montes de cabos plásticos para serem queimados nas fogueiras. Um deles é Kwami Ama, que tem 16 anos e é um dos dois amigos de Bismarck aqui. Kwami tem um corpo forte e uma face redonda e honesta. Somente os olhos dele, muito vermelhos devido à fumaça quando a noite cai, lhe dão uma aparência meio selvagem. As cicatrizes espalhadas pelas mãos foram provocadas pelas bordas afiadas de computadores quebrados e geladeiras velhas. Kwami arranca a camada de isolamento das geladeiras e as usa para acender as fogueiras,antes de jogar as peças de computadores no fogo. O isopor queima emitindo chamas violetas e verdes, com um calor suficiente para derreter até mesmo cabos dotados de produtos químicos retardadores de fogo no seu isolamento plástico.

Ao contrário de Bismarck, Kwami não consegue mais falar sobre a sua vida. "Fico triste com frequência", diz ele, embora esteja se saindo bem pelos padrões de Sodoma. Alimentar as fogueiras é a tarefa mais tóxica de todas, mas ele ganha dinheiro suficiente para alugar um local para dormir em um barraco de madeira em Sodoma. O barraco tem cerca de dois metros de largura por três de comprimento. Três garotos dormem dentro dele, dividindo o assoalho de madeira. Não há janelas no barraco, mas a porta tem um cadeado, o que lhes permite dormir em segurança – um luxo em Sodoma.

Pobres contra pobres

Ao contrário do seu amigo, Bismarck tem medo da noite. Ele enrola-se no escuro como um cão e dorme encostado em uma parede de madeira em Sodoma, ou sobre as cinzas, ao lado de uma geladeira quebrada na área aberta onde ficam os eletrodomésticos quebrados. Às vezes dorme sobre as balanças. Muda o local de dormir com frequência. Bismarck tem apenas dois amigos aqui. No inferno, os pobres lutam contra os pobres.

Há alguns dias, Bismarck teve um golpe de sorte ao encontrar uma grande quantidade de cobre, e o homem da balança pagou a ele sete cedis. Bismarck só gastou dois cedis, mas na manhã seguinte os outros cinco haviam desaparecido. Alguém usou uma lâmina para abrir o bolso de Bismarck quando ele dormia. Ele simplesmente ganha muito pouco. Bismarck consegue pagar pela comida ou por um local para dormir, mas não pelas duas coisas.

Bismarck também não pode passar a noite com os seus outros amigos. Danjuma tem 11 anos de idade e acredita que já está trabalhando aqui há vários anos. Os seus pais ainda são vivos, mas quatro outros irmãos dividem um barraco com ele em Sodoma, e não há espaço lá para Bismarck.

A mãe de Danjuma detesta ver o filho trabalhando nas fogueiras e desejaria que ele estivesse na escola. Mas a família precisa de dinheiro. Danjuma é o filho mais velho, e não se sabe quanto tempo mais ele será capaz de trabalhar efetivamente. Ele padece de dores frequentes no peito e nas costas.

Danjuma e Bismarck pertencem ao grupo mais jovem, de crianças entre 8 e 14 anos. Nem eles nem as meninas têm permissão para alimentar o fogo. Os garotos novos trabalham com ímãs, e as meninas trazem água em sacos plásticos, e às vezes comida, para os garotos mais velhos. "A gente tem que beber muita água", explica Kwami. O sol é escaldante, fazendo com que a temperatura seja de 30 graus à sombra. Mas não existe sombra em Agbogbloshie. Perto dali o plástico está queimando a uma temperatura de mais de 300ºC.

Encolhendo o cérebro


Kwami diz que se esqueceu de muita coisa, mas que ainda se lembra muito claramente de um certo dia do ano passado. Um grupo de indivíduos brancos veio até à área de ferro velho, o que é raro. Eles eram do Greenpeace. Um homem usava luvas e carregava pequenos tubos de ensaio. Ele coletou amostras da lama de um dos lagos formados pelo rio, e depois cinza e solo de vários locais diferentes na área.

O químico analisou as amostras quando voltou para casa, na Inglaterra, e os valores que obteve não foram bons. Ele descobriu concentrações elevadas de chumbo, cádmio e arsênico, bem como de dioxinas, furanos e bifenis policlorados.

O chumbo, para tomar como exemplo apenas um dos produtos químicos perigosos, provoca dores de cabeça e estomacais após uma breve exposição. No longo prazo, ele danifica o sistema nervoso, os rins, o sangue e especialmente o cérebro. Quando uma criança ingere chumbo através da água ou por inalação, o seu cérebro encolhe ligeiramente e a sua inteligência diminui.

Cientistas da Alemanha ficam preocupados quando descobrem concentrações acima de um limite de 0,5 miligramas de pó de chumbo por metro cúbico de ar. O tubo de raios catódicos de um único monitor de computador contém cerca de 1,5 quilograma de chumbo. Muitas das outras substâncias encontradas pelos químicos no local também provocam câncer, entre outras doenças.

Contra-atacando

Mike Anane, um ativista ambiental e coordenador local da organização internacional de direitos humanos Fian, trouxe os membros do Greenpeace para cá. Anane nasceu aqui há 46 anos, bem ao lado de onde hoje fica Agbogbloshie. Naquela época, as margens dos rio eram repletas de prados verdes e de flamingos, e os pescadores tiravam o seu sustento do rio. Agora não existe vida nessas águas.

Oito anos atrás, Anane começou a perceber a chegada de uma quantidade cada vez maior de caminhões em Agbogbloshie, com as carrocerias repletas de computadores. Ele observou a situação de perto e passou a contra-atacar aquilo que viu. Anane coleta adesivos de procedência de vários computadores descartados para descobrir de quem são os venenos queimados aqui. Ele possui adesivos do Departamento de Defesa dos Estados Unidos, de autoridades britânicas e de companhias como o Banco Barclays e a British Telecom. "Algumas crianças daqui não chegarão aos 25 anos de idade", acredita Anane.

Ele sabe, porém, que as companhias e organizações cujos selos chegam aqui juntamente com os equipamentos descartados não são os agentes que de fato trazem esse lixo para o seu país. As pessoas diretamente envolvidas são comerciantes como Michael Ninicyi, diretor da Kofi Enterprise.

A Kofi Enterprise é uma pequena loja repleta de computadores. Os melhores produtos são velhas máquinas Pentium vendidas por US$ 90 (R$ 156), incluindo um leitor de DVD. Impressoras e copiadoras são exibidas sob uma cobertura amarela na frente da loja - todas as máquinas são provenientes da Alemanha, segundo Ninicyi. Um exemplar do jornal "Berliner Morgenpost", usado para proteção contra arranhões, encontra-se dobrado entre dois computadores. Algumas das máquinas ainda trazem os adesivos de companhias cujas sedes ficam, por exemplo, na pequena cidade alemã de Kleve, no Estado de Brandenburgo ou no de Rhineland. Todos esses produtos funcionam e são legais.

"Este negócio é bom para Gana"

Ninicyi usa calças com vincos, um colar de ouro e sapatos caros. Eis um homem de sucesso. O seu inglês é excelente, ele fala bem e é capaz de se defender  - embora não sinta necessidade disso. Na verdade, o que ele sente é o contrário.

Ninicyi compra os seus produtos exclusivamente de navios de contêineres provenientes de Hamburgo. "Os alemães simplesmente tomam mais cuidado com os seus equipamentos do que qualquer outro povo", explica. Ele não quer dizer exatamente quem são os vendedores. Ninicyi compra os produtos sem examiná-los, algo que é comum nesta atividade. Como parte dos seus cálculos de custos, os vendedores alemães fazem com que em cada contêiner haja alguns equipamentos que funcionam, bem como alguns que ainda podem ser consertados. O restante, cerca de 30%, é lixo, que Ninicyi repassa imediatamente aos garotos que vêm de Agbogbloshie com os seus carrinhos da mão. Contêineres vindos do Reino Unido trazem uma proporção muito maior de lixo.

"Este negócio é bom para Gana e para os outros países", assegura Ninicyi. Ele diz que sente pelas crianças, mas afirma que paga impostos, e os seus fregueses também e que o povo de Gana tem acesso a computadores por um preço acessível.

Ninicyi conhece até uma teoria maior que faria com ele fosse visto como algo semelhante a um funcionário de ajuda de desenvolvimento. A teoria da "lacuna digital", originalmente desenvolvida na Universidade de Minnesota, afirma simplesmente que, como os pobres não têm acesso aos meios modernos de comunicação, e como é o conhecimento que cria prosperidade, as pessoas mais pobres continuarão ficando para trás e a lacuna se expandirá ainda mais. O fornecimento de computadores ajuda a reduzir essa lacuna.

Essa teoria tem alguns pontos fracos. Por exemplo, ela foi desenvolvida em 1970, três anos antes de um jovem estudante chamado Bill Gates sequer começar a estudar na Universidade Harvard. Há também uma segunda teoria da era da computação, a Lei de Moore, cujo nome é uma alusão a um dos cofundadores da Intel, que afirma que a capacidade de processamento dos computadores dobra a cada dois anos. Os criadores de softwares seguem a tendência, fazendo com que os computadores mais novos de hoje já estejam ultrapassados amanhã e prontos para serem mandados para Sodoma um dia depois.

"Por que vocês não param de nos mandar lixo?"

"Esse processo está cada vez mais rápido, e nós estamos sendo esmagados", queixa-se John Pwamang, diretor do Centro de Gerenciamento e Controle de Produtos Químicos da Agência de Proteção Ambiental de Gana. A agência está localizada em um prédio de concreto em péssimas condições. A caminho do escritório de Pwamang, os visitantes precisam subir primeiro uma escada que no passado deve ter sido verde, e a seguir passar por um banheiro com defeito e uma sala de conferência de cortinas marrons esfarrapadas. Na sala há três depósitos de lixo - um marrom, para papel, um cinza, para plástico, e um outro marrom para tudo mais. Entretanto, o país não conta com um sistema de reciclagem de lixo em funcionamento. Ao que parece a agência de Pwamang ainda tem alguns problemas pela frente.

Os olhos de Pwamang são pouco visíveis por trás das grossas lentes bifocais. Ele fala suavemente, o que o ajuda a parecer mais tranquilo do que realmente é. "Vocês europeus não mudam", reclama ele. "O que deveríamos fazer com os produtos tóxicos que vocês nos mandam? Não temos como reciclá-los. Vocês possuem as instalações para isso. Computadores que funcionam não são nenhum problema, mas muitas das máquinas velhas demais não duram nem um ano aqui. Por que vocês nãoparam de nos mandar lixo?".

Pwamang não tem como provar que o chumbo e as dioxinas estão matando as crianças. Quase ninguém com mais de 25 anos trabalha nas fogueiras às margens do rio de águas pretas. E não existe estudo algum sobre o problema. O Greenpeace identificou e quantificou as toxinas, mas  não examinou os efeitos diretos delas. "As crianças estão doentes", afirma Pwamang. "Temos aqui metais pesados e venenos. Um estudo seria bom, mas mesmo sem nenhum estudo eu sei que a situação é desastrosa."

Sonhando em escapar

Apesar de tudo, as crianças de Sodoma às vezes parecem se divertir. Os garotos mais velhos jogam futebol à noite em um espaço aberto entre as fogueiras, com dois vergalhões servindo de gol e monitores de computador vazios marcando as bordas do campo. Os jogadores correm e mergulham entre a fumaça das fogueiras. Eles não estão jogando apenas para se divertir, mas também pelo seu futuro, já que muitos ganenses deixaram o país para jogar em times profissionais no Ocidente. É um sonho meio louco, mas para muitos dos jovens daqui, um sonho é a única coisa que lhes permite escapar.

O amigo de Bismarck, Danjuma, tem o mesmo sonho, é claro. Ele adoraria treinar futebol, apesar das dores no peito. Não tem dinheiro para comprar uma bola. Mas talvez seja melhor assim já que, se corresse, ele teria que respirar profundamente a fumaça.